O estigma da saúde mental e o que “Loucos um pelo outro” pode nos ensinar
Esse texto é uma breve análise, com o meu olhar psicológico, sobre o K-drama “Mad for each other”, ou conforme traduzido para o português “Loucos um pelo outro”. O drama é exibido pela Netflix e contém 13 episódios com cerca de 30 minutos cada. É importante avisar que esse texto conterá spoilers; tentarei não detalhar os acontecimentos, mas eventualmente alguns elementos precisarão ser ditos. Além de estar ciente disso, ao decidir continuar a leitura, saiba que tanto o K-drama quanto o texto podem conter temas sensíveis, como transtornos mentais em geral, transtorno do pânico, estresse pós-traumático e violência.
Duas pessoas que aparentemente não se suportam têm duas coisas em comum: transtorno mental e a mesma psiquiatra; assim conhecemos os protagonistas Lee Min-kyung e Noh Hwi-oh. Além disso, são vizinhos, e por isso suas vidas passam a se cruzar cada vez mais em situações imprevisíveis. Ao longo dos episódios, vamos conhecendo esses personagens pouco a pouco, o que inclusive nos causa certa curiosidade acerca dos transtornos de cada um, que não são revelados à princípio. É natural do ser humano ser curioso, principalmente quando estamos falando de assuntos da saúde mental, temas que ainda beiram o tabu.
A partir do momento que em um episódio, o diagnóstico é anotado na ficha desses pacientes, começamos então a enxergar os personagens com outros olhos e entender os motivos que os levam a ter determinadas ações e reações. Os “mistérios” por trás de cada um vão sendo revelados aos poucos, o que possibilita que montemos um quebra-cabeça que forma suas histórias.
Tanto a postura dele quanto a dela nos conta muitas coisas. Hwi-oh é um detetive que está afastado do cargo por ter tido problemas em controlar a raiva, enquanto Min-kyung tem, aparentemente, Transtorno do Pânico decorrente de um trauma. A maneira que ela usava suas roupas e acessórios de modo a afastar as pessoas do seu caminho foi uma das primeiras coisas que notei enquanto assistia. É bem mais cômodo e seguro ser evitada para não manter contato com outras pessoas. À medida que os episódios vão avançando, também percebemos uma mudança nos personagens e isso pode ser notado quando ela se sente mais segura com a nova casa e sua nova relação com o vizinho, por exemplo. Ainda sobre isso, uma cena me chamou atenção: quando ela coloca os quadros na parede, organizando minimamente o apartamento, demonstrando quando finalmente se sentiu segura.
Apesar do K-drama ser de comédia e ter uma ‘pegada’ mais leve, ele trata de assuntos importantes e mostra que saúde mental não é piada, assim como transfobia, violência doméstica e todo o preconceito que cercam esses temas, principalmente na Coreia do Sul. O personagem queer é uma peça importante na vida dessa vizinhança, e sua trajetória no drama conversa diretamente com a do personagem principal, em que em uma das cenas mostra um lado sensato e sensível, que bate de frente com o preconceito estampado contra um homem que se veste com roupas femininas.
Outra questão que nos coloca a pensar, é como, em casos de violência doméstica/conjugal, a dor da vítima ainda é minimizada. Esse é inclusive o eixo central da história da protagonista, que após sofrer um ataque do ex-namorado entra nesse quadro de pânico e obsessividade, com medo de perseguição, chegando a duvidar até de si mesma. Vivenciar uma situação de violência é, muitas vezes, um ciclo duradouro e doloroso. Uma agressão física ou verbal pode ter impactos, na maioria dos casos, permanentes na saúde mental da mulher que foi vítima.¹
Dois pontos principais que podemos aprender com tudo que foi dito e/ou visto no K-drama são a relevância da empatia e que saúde mental importa. Em vários momentos observamos os personagens — tanto principais quanto secundários — sendo empáticos ou sentindo na pele a necessidade de empatia diante de determinadas questões. É importante ressaltar que assim como na ficção, a vida real nos coloca diante de situações em que precisamos ser empáticos uns com os outros, entender que cada pessoa possui suas batalhas, seus traumas e uma trajetória que é singular, e que devemos nos lembrar disso antes de julgar alguém por suas ações ou reações. O segundo ponto, é ser uma obra que levanta sempre a pauta de que saúde mental importa e merece atenção, e o mais importante: tem tratamento! O drama incentiva a terapia e o acompanhamento psiquiátrico, como algo natural — como deveria ser.
Por mais que atualmente já tenhamos avançado muito na discussão e promoção da saúde mental, ainda há muito o que caminhar. No Brasil, estamos passando por uma crise na saúde — além da pandemia em virtude da COVID 19, que tem assolado e assombrado o país — e precisamos sempre nos lembrar que existe o SUS e uma política pública de saúde mental que é constantemente ameaçada por falta de recursos e cortes no setor. Somente debatendo sobre o assunto, consumindo o serviço que nos é ofertado e promovendo discussões saudáveis sobre sofrimento mental, é que iremos quebrar o tabu que ainda cerca o assunto. Promover estigmas — em qualquer área — é promover indivíduos marginalizados e retrocessos em relação às nossas condições psicológicas.
Notamos isso quando vemos no drama o quanto eles conseguiram normalizar pouco a pouco, os assuntos referentes aos seus traumas, inclusive cultivando uma rede de apoio entre eles. Em uma determinada cena, em que os protagonistas estão bebendo juntos, eles chegam a conclusão que não são loucos e que loucos são os outros. De certa forma, esse diálogo nos chama novamente para a realidade; se eles que estão enfrentando seus traumas e questões, deveriam mesmo ser rotulados como loucos? Chego a conclusão de que louco é quem não tem coragem de confrontar suas dores e se colocar vulnerável em relação ao outro.
Espero que cada vez mais produções coreanas/asiáticas no geral tragam assuntos tão importantes quanto esse e que ainda enfrentam tantas barreiras. Se estiver passando por alguma situação, busque ajuda profissional! Além de profissionais qualificados, quem passa por algum momento de crise, pode ligar para o CVV² (Centro de Valorização da Vida) no número 188. O atendimento é feito 24h, por pessoas que estão aptas para ajudar. Lembre-se que saúde mental é um assunto sério e deve ter espaço e reconhecimento de profissionais qualificados para falar sobre!
Revisado por: Brunna Martins
Referências:
¹ Macedo, Ana Lívia. Violência doméstica e familiar afeta a saúde mental da mulher. Disponível em: https://www.ufpb.br/comu/contents/noticias/violencia-domestica-e-familiar-afeta-saude-mental-da-mulher
² CVV: https://www.cvv.org.br/